domingo, 13 de dezembro de 2009

LONGONJO

Após algum tempo fora, regresso ao meu bairro não para falar dele. Hoje desconsigo mesmo ter lembranças do bairro. Mas um artigo do meu amigo da cidade, Fernando Pereira, no Novo Jornal - Mutamba, nº 99, na coluna Ágora, trouxe-me ao andar onde guardo memórias um dos episódios que sempre me marcou pela vida. Devo começar por dizer que a foto deste blog é mesmo da Igreja do Longonjo!
Vamos também localizar o Longonjo onde passei muitas das vezes no mala do CFB e da qual não guardo nenhuma foto no sótão das lembraduras. Longonjo é uma vila e município da província do meu Huambo. Tem 2 915 km² e cerca de 91 mil habitantes. É limitado a Norte pelo município do Ekunha, a Este pelo município de Caála, a Sul pelo município de Caconda, e a Oeste pelos municípios de Ganda e Ucuma. É constituído pelas comunas de Longonjo, Lepi (aqui nasceu outra grande figura da medicina em Angola e Portugal, o cirurgião Fernando Martinho), Katabola e Chilata.
Mas o Fernando, o Pereira, trouxe-me ao de cima uma das estórias que vivi em candengue. Não recordo a idade, o local, a igreja, mas recordo a cena passada comigo na tal Igreja do Longonjo e o nome do sacerdote que tentava aliviar multidões, angolanos e portugueses, de demónios, bruxas e outros males do corpo mas que provinham, diziam, da alma e do espírito. Minha mãe, uma senhora temente ao seu deus, um dia resolveu que os meus males provinham de belzebus e tipos vestidos de vermelho, com chifres enormes e bafuradas de labaredas e fumos horrendos, e resolveu consultar o padre Lima que tinha a seu cargo a Igreja do Longonjo. Nada como um bom exorcismo para colocar-me de novo no caminho sagrado. Tarefa não conseguida pois não me parece que os demónios, mesmo os piores, se metam com os putos por mais reguilas que sejam. A cena marcou-me de tal maneira, que anos mais tarde tive muitas dificuldades em assistir ao filme O Exorcista, de William Friedkin, mesmo ao ar livre, no cinema Miramar em Luanda. Senti vários arrepios, medos, terrores, que fui mantendo ao longo do tempo e que me fez afastar de demónios, exorcismos, crendices e bruxas até aos dias de hoje. Não acredito em bruxas mas aceito, como dizem os ibéricos, que as há, há!
Obrigado ao meu amigo Karipande por me avivar a memória de uma estória, não do meu bairro, mas de alguém do bairro, eu mesmo, que utilizava o comboio para conhecer alguma coisa da minha Angola. O Padre Lima conseguiu, isso sim, exorcizar-me da memória um Longonjo que terá as suas belezas e os seus encantos, mas que tem a virtude sobrenatural de pertencer ao Huambo.

domingo, 8 de novembro de 2009

CAIXA DE MÚSICA



Era sem dúvida um dos objectos, colocado na cómoda do quarto de meus pais, que mais me fascinou enquanto miúdo. De cor preta, tipo ébano, bem envernizada, sem um pingo de pó, forrada a um pano vermelho, tinha uma bailarina vestida de branco que me encantava na sua dança repetitiva em frente de um espelho que projectava as ilusões de um conto de fadas. Penso que em muitas casas lá da minha rua havia muitas dessas caixas e muitos de nós sonhou com a bailarina das nossas vidas. Sei, também, que nenhum de nós deu em bailarino pois ter essa profissão não era coisa de macho. Mas para além dos sonhos que a bailarina me transmitia, a música era de uma tranquilidade que ainda hoje recordo. Apanhando toda a gente distraída, lá ia eu ao quarto de meus pais ouvir a música, ver dançar e sonhar com um mundo de encantar. Mas para além deste mundo de fadas havia uma realidade bem mais terrena na caixa de música. Eram as moedas de vinte e cinco tostões que a mãe por vezes lá colocava, tipo mesada, ou por lá se esquecia, digo eu. Quando havia lá a moeda para além dos prazeres da caixa musical, nesse dia no Liceu tinha merenda reforçada. Uma Coca Cola e um pastel de nata, um manjar dos deuses. Assim foi durante anos.

Hoje nas minhas viagens, com outras músicas, outros bailados, verifico que há um programa na Antena 1 que me faz sentir outra vez candengue e regressar ao passado do meu Huambo. Chama-se Caixa de Música e por acaso do destino quem o apresenta, quem é responsável pelo programa, chama-se, só, Augusto Fernandes. Maldito (!), ou será bendito (?), destino.

sábado, 31 de outubro de 2009

REGULADORA

Depois de um interregno para um fim de semana no Hotel Babilónia voltemos ao meu Bairro onde se deram e dão muitos fenómenos bons e que nos levam ao sonho.
No meu bairro todos os dias o sol se espreguiçava por trás de umas mangueiras que existiam nos quintais das casas. Sempre quentinho, nas manhãs frias do Huambo ninguém conseguia que fossemos ligeiros no despertar e no ir fazer tudo aquilo que fomos aprendendo na lição da vida. Água fria nos olhos, rápido, tipo higiene de gato, vestir tudo de uma vez só numa técnica que fomos aprendendo e pequeno almoço, sempre bom e aromático. Depois bora lá para o maximbombo a caminho do liceu.
Bem, isto era aquilo que devia ser o normal de um acordar semanal e em tempo de aulas. Só que para ajudar na festa da rabujice matinal resolveram, os mais velhos, ir ao Armazém do CFB e comprar uns despertadores que faziam mais barulho que os corvos e outras aves de rapina que ao fim da tarde tentavam apanhar os pintos distraídos nos quintais a aprender a serem aves. Cinzentos, tinham um tic-tac que punha qualquer ser vivo à beira de um ataque de nervos e que, pelas seis horas da manhã, tinham um estridor que nem mil moribundos em telhado de zinco a tentar sobreviver. Pior que isto eram alguns vizinhos que para aumentarem o desespero faziam com que os Reguladora gritassem numa panela de alumínio que se ouvia pelo bairro todo. Um desespero. Claro que soubemos perdoar a todos estes despertadores e mais tarde até fizemos inveja ao comprá-los de outras cores e outras formas. Ainda hoje, na mesinha de cabeceira, muitos de nós terá um Reguladora mas com formas mais desportivas e menos ruidosos.

sábado, 24 de outubro de 2009

TCHEKA

Sempre que permaneço num hotel, seja cá dentro ou lá fora, confesso que nunca mais lhe recordo o nome nem a cadeia a que pertence. Mas há um que, apesar de estar e permanecer nele só por duas horas e aos sábados, me dá um grande prazer, um forte sentimento de bem estar. Não só pela qualidade do serviço que proporciona, pela forma como são atendidos os clientes mas também pela ternura que desperta e a alegria proporcionada a quem o frequenta. Além do mais o profissionalismo dos seus funcionários está acima da média e o bom gosto dos programas é uma marca de qualidade que não é possível transcrever para as estrelas que estão nas portas da entrada ou nos panfletos publicitários. Dir-me-ão que tem um recepcionista monárquico, que se zangou com Abel, irmão de Caim, e de quem o defendeu na Terra, mas que consegue estar em sintonia com um outro recepcionista mais aberto na relação recepcionista/cliente. Sempre com um sorriso, um forte amor pela vida, atento a todas as diferenças culturais dos clientes, foi o Pedro, assim se chama este homem atento, que um dia me proporcionou descobrir o dono da bela voz crioula das ilhas de Cabo Verde e que de mansinho entrava em todos os cantos do hotel e do meu quarto que tem um nome japonês, Mazda. O jovem cantor, embrenhado num doce canto crioulo de Santiago chama-se Tcheka e é só o vencedor do Musiques du Monde 2005 com o seu último disco "Nu Monda". Já agora o Hotel dá pelo nome de Hotel Babilónia, abre às 10 h de Sábado na Antena 1 e fecha ao meio-dia e os recepcionistas foram batizados (foram?) com os nomes de João Gobert e Pedro Rolo Duarte.
Partilho convosco o Tcheka ao vivo no Mindelo e que se encontra disponível no YouTube e aconselho-vos a frequentar o Hotel Babilónia.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O NOSSO LEITE

Yeah! Era mesmo deste leite que os candengues bebiam todos os dias lá no meu bairro. Se o kumbu que precisávamos para a coca.cola que ao fim da tarde bebíamos na Kambo viesse nas latas do leite NIDO então hoje cada um de nós andava a mostrar aos caluandas como é ser rico. Mas verdade mesmo, este leite tinha qualquer coisa que ainda hoje quando nos encontramos falamos nele. Muitos de nós ainda nos lembramos do gosto que o pó que envolvia o nosso indicador tinha quando, surrateiramente, o metíamos na lata e, às escondidas da mãe, o degustávamos como fosse o néctar da palmeira. Era fantástico o gosto que o leite em pó tinha e as emoções que sentíamos.
Claro que à falta do leite materno esta era uma vantagem de podermos beber este fantástico alimento até bem tarde. Depois as latas vazias serviam para as numerosas brincadeiras que tinhamos ao fim da tarde lá no bairro. E rolavam, e serviam de alvo aos tiros e pedradas da nossa meninice, e serviam de tambor para as nossas canções, e até serviam para, ao final da tarde, engaiolarmos insectos e outros bichos. Só os mosquitos não conseguiamos. Mas verdade, com este leite nunca ouvimos falar de obesidade infantil! Ou sería da utilidade que dávamos à lata depois de vazia? Certo, certo é que a marca fez enriqucer uns tantos e quem a bebeu (quantos litros terão sido para cada um de nós?) não ficou milionário!

domingo, 13 de setembro de 2009

SANJO

Os putos lá do bairro, pelo menos os de cor de pele mais clara, tinham uma maneira interessante de se "fardarem" para irem para a escola. Além da roupa habitual havia sempre uma bata branca bordada com o nome de quem a usava e o nome da escola, bata que era utilizada todos os dias e que lavada com o célebre detergente OMO lhe dava um cheirinho fresco de que todos gostávamos. A bata tapava muitas riquezas e muitas misérias mas colocava-nos a todos no mesmo chão e no mesmo país, em igualdade. Além da bata havia uma farda verde e castanha com um cinto que possuía na fivela um S enorme, usada para algumas ocasiões e que servia para um regime se identificar. Pobre regime que identificava os seus cidadãos mais jovens com este tipo de farda completamente fora de moda!
A bata servia para todos nós nos sentirmos iguais sem diferenciação pela maneira como nos vestíamos. Mas para nós rapazes havia uma peça do nosso vestuário, que usávamos nas aulas de ginástica, que faz parte do nosso recordatório da vida e que usávamos com uma alegria sem paralelo. Falo dos ténis Sanjo, brancos, de uma elasticidade ímpar, confortáveis e que davam para toda a prática física dos nossos pés. Desde o trampolim, movimentos no solo, salto de cavalo, futebol, andebol, vólei, as Sanjo para tudo serviam e para tudo eram utilizados, tratando muito bem os pés de quem as calçava.
No futebol muitos de nós usávamos os ténis tentando não os estragar e sujar muito por causa das reprimendas que a seguir tinhamos que ouvir. Mas o impressionante era que nesses mesmos jogos as Sanjo eram dribladas, com umas reviangas do outro mundo, por pés descalços, pretos por cima brancos por baixo, dos nossos amigos do bairro e de outros bairros que até pelos sapatos que usavam pareciam ser angolanos de outro país. Desigualdades de quem mandava e de quem gostava de mandar vestir fardas verdes e castanhas com o tal S na fivela dos cintos e que estava fora de moda. Os ténis Sanjo sempre ficaram no nosso coração, pois depois de algum uso serviam para calçar os pés descalços do nosso bairro, enquanto as outras fardas muito cedo nos recusávamos a vestir pois serviam para manter muitos angolanos descalços.

sábado, 29 de agosto de 2009

HITACHI


Há objectos e momentos que ficam na nossa memória e nos marca a vida e os sonhos. Havia lá em casa um rádio, marca Hitachi, de capa castanha de cabedal e que tinha sido comprado em Las Palmas aquando da única viagem que o mais velho fez à Metrópole, com a família, em gozo de licença graciosa e que ficou sempre marcado na minha memória. O Princípe Perfeito, navio de muitas e com muitas histórias, tinha saído de Lisboa e resolveu fazer escala nas Canárias. Como era um candengue o meu pai resolveu que eu e a mãe estaríamos melhor se ficassemos a descansar, pois o pior da viagem para o Lobito ainda estava para acontecer, enquando ele "dava uma volta pela cidade para ver se valia a pena o esforço". Claro que a partir de uma certa hora da madrugada a mãe já não deixou dormir ninguém enquanto o kota não chegasse da sua viagem de bandeirante por ilhas com muito para descobrir. Já o dia ía alto quando o meu pai chegou perto de nós, não era portador de nenhum papagaio colorido, e ía começar a contar a sua peregrinação na noite. Nunca soube o que aconteceu pois o rimbombar dos trovões da mais velha, qual trovoada na Cela, calaram toda e qualquer tentativa de sabermos o que se passara naquela noite em Las Palmas. Mas como depois da tempestade vem sempre a bonança, passada a trovoada, o mais velho entrega-nos, em vez do Zé Carioca, um rádio que marcará para sempre o futuro das nossas vidas, rádio esse comprado sem impostos como se fartou de comunicar e com uma nitidez de som que não havia outro igual em local nenhum do planeta.
O Hitachi serviu de companhia a todos nós lá do bairro que aos domingos à tarde nos juntávamos à sombra da mangueira do quintal para vibrarmos com as fintas do Eusébio, as cabeçadas do Torres, os centros do José Augusto, os passes do Coluna, a rapidez do Simões e os golos do nosso Benfica. Isso quando o mais velho estava de viagem pois ele portista ferrenho não prescindia dos relatos do seu FêCêPê. Ainda facilitamos e deixamos que o Hitachi falasse dos manos Adrião, moçambicanos, durante uns mundiais de hóquei em patins. Nunca soube se o "nosso" Hitachi alguma vez deu a conhecer a Rádio Argélia, Moscovo ou do Congo. Morreu já em Portugal depois de em 1975, no nosso bairro lá no Huambo, gritar que Angola era de Cabinda ao Cunene e que na nossa terra só havia lugar para um só povo e uma só nação.

sábado, 22 de agosto de 2009

BITACAIA OU MATACANHA

Confesso que não era preciso estar aquele calor que torrava os nossos pensamentos e que por vezes nos atormentava os sonhos para andarmos descalços. Em casa ou no quintal gostávamos de sentir o chão que pisávamos. Diziamos sentir-nos mais livres. As mamãs não gostavão muito que nos assemelhassemos aos que viviam fora do asfalto. Mas só faziamos isto quando não andávamos atrás de uma bola. E este gesto constituia um perigo para todos nós. Eramos avisados que podíamos ser "violados" por uns pequenos bichos, uma pulga, que lhe tinham baptizado de bitacaia. Em Luanda este estupor dava pelo nome de matacanha. A bitacaia introduzía-se pelos dedos dentro e depois era ver todos com ar assustado enquanto as mamãs, de alfinete em riste, tentavam arrancar o diabo de dentro do corpo. Quando conseguiamos aguentar a tortura sem um ai então estávamos preparados para enfrentar os capinzais e ir às capoeiras tentar surripiar uma ou outra galinha para aliviar a fome de muitos do nosso bairro. Sim porque o nosso bairro ía para além do asfalto.

Como este blog também pode servir para se aprender um pouco mais, aí vai, para quem não sabe, o que é uma bitacaia ou matacanha.
Bicho-de-pé é um insecto sifonáptero (Tunga penetrans) relativamente comum nas zonas rurais, a fêmea fecundada penetra na pele do homem ou de outros animais, causando forte comichão e ulceração que pode servir como porta para infecções de agentes patogénicos como Clostridium tetani causador do tétano.
Estes os nomes que o terrível pode ter: batata, bicho, bichô, bicho-de-cachorro, bicho-de-porco, bicho-do-pé, bitacaia, chique, chitacaia, dengoso, espinho-de-bananeira, esporão, jatecuba, matacanha
, moranga, nígua, olho-branco, olho-de-pinto, piolho-de-faraó, pitxoca/pitxoka, pulga-da-areia, pulga-de-bicho, pulga-do-porco, pulga-penetrante, sico, taçura, taçuru, tatarné, tuçuru, tunga, tunguaçu, vitacaia, xiquexique, xíquia, zunga, zunge, zunja.
Na verdade, só a fêmea grávida invade o nosso organismo, para se nutrir de nosso sangue enquanto desenvolve os ovos. A comichão é causada por uma substância que a bitacaia usa para furar a pele. O sistema de defesa do nosso corpo reconhece-a como algo estranho e reage, provocando uma terrível comichão.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

TARZAN, NÂO!

O que é que nós líamos lá no meu bairro? Todas as horas livres de estudo eram aproveitadas para lermos sozinhos ou em grupo tudo o que nos despertava curiosidade. Quando o fazíamos sozinhos tentávamos depois repartir a informação, ou o material de leitura, para que todos estivessemos em pé de igualdade. Havia um dia, penso que 2ª ou 3ª feira, em que a leitura era colectiva e com discussão em grupo. A Bola era devorada letra a letra, palavra por palavra, página por página. Assim os jogos eram "visionados" como se estivessemos lá e os lances discutidos em visão lenta para vermos tudo aquilo que no Domingo tínhamos ouvido nos transistores. Bons ensinamentos tiramos dos escritos de Cândido Oliveira, Carlos Pinhão, Homero Serpa, entre outros. Recordo um título fantástico, sobre um jogo do nosso Benfica, em que o lápis da censura salazarenta não consegui apagar: "Noite vermelha em Moscovo". Bons tempos em que o jornal era semanário.



Não era sobre os leituras futebolísticas que estava para aqui a tentar escrever. Era sobre as nossas leituras de criança que nos levava aos sonhos das aventuras, das nossas ambições de sermos também heróis. Cada um tinha os seus heróis e tentava defendê-lo com unhas e dentes. Recordo os livrinhos aos quadrados do Major Alvega, Zorro, Cisco Kid, Capitão América, Mandrake, Kansas Kid e até o Hulk, além de outros incluindo os do Walt Disney. Eramos todos fãs do Pluto.
Não atinávamos muito com o Tarzan, depois de reunido o conselho dos putos do bairro. Este ficou de fora porque nunca percebemos porque é que um branco, mesmo caído em África vindo do espaço, criado pelos macacos, nunca tinha adquirido a cor e os hábitos de quem era maioritário no nosso Continente. Até a Jane tinha sido lavada em OMO, que era aquele detergente que lavava mais branco. Não, não nos enganavam pois até os nossos ancestrais vindos da Europa nas cascas de nozes, como dizia o nosso professor de História, ficavam mais escuros e as suas Janes, muitas delas, eram africanas e por isso é que muitos dos nossos amigos eram mestiços. Não, Tarzan não fez parte dos nossos heróis e muito menos dos nossos sonhos.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

AFROBASKET 2009 - ANGOLA DECA CAMPEÃ

Desculpem, mas os do meu bairro também estão bué de contentes. Se quiserem maningue contentes, muito contentes, um cochito de felicidade. A festa foi bonita, pá! Campeões pela 10ª vez, quem segura os manos do basquete? Agora até ao Mundial na Turquia.

sábado, 15 de agosto de 2009

MERCADO DO CANHE



Porque hoje é Sábado recordo com saudade os meus sábdos lá no Bairro. Era um dia diferente dos outros dias. Levantar cedo era um hábito, bem cedo aliás, mal o sol batia na janela do quarto e os primeiros raios invandiam o meu mundo dos sonhos, abria os meus olhos castanhos, escutava as canções dos pássaros e preparava-me para mais um dia de aventuras. Geralmente ao sábado dedicava-me a fazer compras com a mamã, ir ao cinema ou dar um passeio pela cidade.
Mas o que mais me dava prazer e gozo era quando íamos ao mercado do Canhe. O Canhe era um bairro que ficava, fazia fronteira, mesmo coladinho ao nosso bairro. Tinha uma missão católica e possuía uma mercado tradicional bem diferente do mercado municipal. O mercado do Canhe fervilhava em palavras, em encontros, em histórias, em cor, em sons e em cheiros. Havia lá de tudo. Tudo se vendia e foi aqui que aprendi que o valor das cidades, entendo hoje que para além do valor económico também se deve entender o valor social, se mede por aquilo que acontece nos mercados tradicionais. Como gosto, ainda hoje, de visitar os mercados das cidades por onde passo. Saravá Jemaa el Fna, em Marraquexe.
O nosso mercado tinha história. Não sei quem começou com a "lenda", mas que ela ficou para sempre na consciência de muitos de nós é um facto. A Missão era guardada por uns cães cinzentos enormes que metiam respeito até ao mais corajoso. Quando passávamos jundo dos muros da casa os cães olhavam para nós com um ar pouco amigável, mas nada diziam ou faziam. Mas quando passavam os vendedores e as quitandeiras, todos negros, os cães transfiguravam-se. Deitavam faíscas de raiva pelos olhos, ladravam mais alto que os trovões das nossas tempestades, tentavam derrubar os muros e protecções. Era o início de desgraças anunciadas. Alguém nos fez crer que o padre da Missão tinha treinado os animais para distinguir entre pretos e brancos. Nunca o soubemos, porque as coisas da Igreja não são para se saber, aprendemos todos os dias. Mas também soubemos que afinal as diferenças entre os seres humanos estavam à distância de um ladrar de cães bem treinados.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

NSU

O meu primeiro "grande" acidente rodoviário deu-se no meu bairro. Para além do carocha preto, o meu pai possuía uma motorizada a dois tempos, laranja, que todos os candeungues lá do bairro "invejavam" porque eu a tripulava e não tinha permissão, da mãe claro, de a emprestar fosse a quem fosse.
Claro que a motorizada, a lindissima NSU (que mais tarde todos lhe alcunharam de Não Se Usa- inveja digo eu), servia sobretudo para os recados da kota Maria, senhora minha mãe. Era para ir às compras ao Armazém, ir buscar fruta ao mercado do Canhe, porque ao Municipal tinha muito trânsito e o puto podia-se ficar debaixo de qualquer coisa, enfim, dar umas voltas ali e só pelo Bairro. Era assim até ao dia que eu resolvi acelerar um pouco mais e quebrar o meu "recolher obrigatório" e sair mesmo sem salva conduto.
Mas voltando ao acidente. A casa amarela tinha a cozinha e a despensa fora do edifício central. Entrava-se em casa por um portão enorme de ferro, havia uma rampa que batia na parede da cozinha onde havia uma janela e a rampa. a descer bastante diga-se desde já, dava para uma garagem de madeira feita para guardar o Fusca, ao lado do forno de lenha que servia para aquecer a água. Fui convidado a ir ao mercado local, fazer qualquer coisa que demorava pouco tempo, e autorizado a deslocar-me motorizado. Peguei na NSU, cabelos ao vento, e o mundo foi todo meu. Não, as garinas nada diziam, não acenavam, não havia poeira poeirada no trás da NSU, só eu e o Mundo. Certo que depois de fazer o recado, cá o mano se perdeu no Bairro e nas horas. Quando voltei à realidade já dona Maria devia ferver dos azeites e ansiar pela ginástica que fazia às suas mãos e, por vezes, aos seus chinelos nas mádegas cá do Zé. Vai daí a NSU teve que dar o litro, acelarando na estrada e no batimento do coração do puto que já não tinha punho anatómico que resistisse de tanto o forçar para que o punho do acelerador atingisse o máximo.
Grande curva que fiz para entrar no portão, sempre a fundo, a rampa parecia reta, a parede estava lá, grande estoiro, parecia terramoto, NSU feita num oito escaqueirada contra a parede, pelo menos a roda dianteira, cadengue pelos ares como nos filmes do Ferrovia, a janela ali mesmo para ele entrar em vôo picado, passar por cima das panelas e fogão, e estatelar-se em cima da mesa de madeira que havia na cozinha. Dona Maria corria quintal fora, gritando "estamos a ser atacados pelos turras"
Mas passado o susto do início da luta armada lá no meu bairro, verificando que o filho se levantara e nem um ai dissera, a dona aconchegou os chinelos, e de que maneira, aos calções do "brincalhão do quintal". Mas naquele dia o meu bairro não ouviu nem um ai de choro, pelo menos saído da minha boca. Certo que o kota depois de acentar a poeira, verificar os estragos, pegou na lindissima NSU e foi tratá-la nas oficinas do CFB. Só muito mais tarde é que voltei a sentir a sensação de como se conduzia esta magnífica motorizada, mesmo que para a travar tivesse que andar com os pedais para trás.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

CARRINHO DE ROLAMENTOS

Os putos lá do bairro sempre quiseram ser pilotos de qualquer coisa. Fazíamos pistas na varanda do Casimiro e do Quim com o giz que trazíamos lá da escola. Desenhávamos os circuitos mais intensos que descobríamos nas nossas leituras colectivas dos jornais desportivos (ou seria só do jornal desportivo A Bola) que devorávamos com uma fúria de quem quería saber coisas. Depois era só adaptarmos os Corgy ou os Dinky Toys, colocarmos as borrachas dos tubos de tinta da china nos rodados traseiros (para maior estabilidade em pista) e aí estavam os bólides preparados para grandes corridas. Eu tinha um "charuto" verde, fórmula 1, de que não recordo a marca, e um Aston Martin do James Bond, que ganharam algumas provas. Aquilo tinha regras, pontuações, enfim enquanto acelarávamos respirávamos o ar puro do nosso bairro. Nada de salas fechadas, play estações ou mesmo computas do tio Bill para acelerarmos nas teclas.
Bem, mas não era só nas pistas de cimento que acelarávamos e onde sonhávamos ser como o nosso fã, o Gilles Vileneuve. Até tinhamos clube de fãs do Gilles e que chorou e de que maneira o seu desaparecimento. Galopávamos nos cabos das vassouras das mamãs indo que nem cavalos loucos pelos caminhos de terra do nosso bairro. Cruzávamos, a velocidades mil as ruas com os arcos dos barris que os kotas nos arranjavam nas oficinas do CFB. Enfim, sonhos de candengues que desfazíamos nas ruas da nossa cidade enquanto assistíamos ao acelerar dos bê émes e dos alfas durante 6 horas seguidas. Pópilas!
Desgostávamos, isso sim, não poder acelerar nos carrinhos de rolamentos que construíamos com ternura e amor. O nosso bairro era plano, não tinha subidas ou descidas que nos fizesse acelarar no alcatrão e travar até rasgar as sapatilhas para fazermos curvas mais pronunciadas. Lá se íam os sonhos que alimentávamos na varanda da casa amarela, segunda a contar do triângulo, do nosso bairro.

domingo, 2 de agosto de 2009

2 de AGOSTO

Hoje, 2 de Agosto de 2009, Zeca Afonso completaria 80 anos. Tomei conhecimento desta voz magnífica, do poeta cantante, no meu bairro. Um dia um kadengue mais velho, o Toni Vaz (belo jogador dos Kurikutelas, jogava a meio campo e veio para o Ferrovia porque nós, os amigos, lhe pedimos muito - foi campeão de Angola em 1974) que fazia rádio no Liceu, trouxe-nos uma K7 do Zeca. Trás Outro Amigo Também era o nome da canção que nos ficou para sempre no pensamento e que solidificou as amizades e abriram a turma a outros companheiros. Mas não vou escrever sobre o Zeca, mais tarde encontrei-o num grande canto livre na cantina da Universidade em Luanda, com o Adriano, o Mingas e o Carlos Lamartine, e que compartilhamos outras histórias bem mais sérias.
O meu bairro parecia um comboio. As casas arrumadinhas, umas a seguir às outras, que se iniciavam com as moradias dos sanguitos (os de sangue azul), mesmo em frente à fábrica do gelo e da estação do CFB e acabava ali para os lados da feira do Canhe, depois de passarmos o nosso hospital. Nunca soubemos quem puxava este combóio! As nossas cubatas começavam depois do triângulo, onde todos nós morávamos. Geminadas, também eu morei na minha casa amarela. De um piso só tinha uma varanda enorme virada para a estrada e as oficinas, onde deslizava os meus poemas nuns patins oferecidos num Natal, tinha a cozinha e os anexos mais a capoeira fora do edifício central e um quintal fantástico onde o meu pai, nas horas que lhe sobravam depois das viagens, semeava um pouco da sua infância trazida de Trás-os-Montes. Couves, cebolas, cenouras, batatas, tudo ali se dava. A nespereira e a mangueira, propriedade da terra, já lá estavam quando fomos morar para lá. Dormia num quarto pequenino onde estudava e sonhava e onde tinha os meus pesadelos. Ali ficava com a janela aberta durante as noites de mais calor a olhar o céu e as estrelas, e a brincar com as imagens que surgiam na minha cabeça como filmes de ecrã gigante que eu nunca via nos cinemas do Ruacaná, nem do Ferrovia. O meu quarto escondia imensos segredos que hoje recordo como lições de vida. Lembro, como segredos bem guardados as conversas dos kotas que visitavam a casa, sobre a situação que se vivia em Angola, e recordo com um brilhozinho nos olhos, as leituras de um livro que consegui subtrair à clandestinidade das leituras do meu velho (nunca soube que eu o tinha lido, o meu pobre pai), Os Médicos Malditos, e que nunca mais o encontrei nos escaparates das livrarias nem nas prateleiras poeirentas dos alferrabistas da capital do antigo Império.
Foi, talvez este livro, que me fez desviar a agulha e mudar de rumo, sair da "obsessão" de ser engenheiro de máquinas e passar a querer ser médico, talvez um pouco maldito porque não calo à desgraça nem à força de querer ser alinhado ao sistema. Tenho que agradecer à minha casa amarela o ter um quarto reservado só para mim.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

MAKA COM O JC


Os momentos difíceis da vida de um madieu são mesmo difíceis. E lá no bairro passamos por momentos muito dificeis. Mesmo entre aqueles que tinham cumplicidades e andavam quase sempre juntos. Foi o que me aconteceu com o JC! Não, não pensem que foi com o Homem da túnica branca e de cabelos compridos e barbas. Com Ele também me zanguei e zango com alguma frequência. Ainda há pouco tempo Ele não se portou bem. Mas isso são contas de outro rosário como diria a kota da minha avó.

O JC lá do bairro, o João Carlos, morava logo na primeira casa junto ao triângulo. Kandengue fixe, jogador dos jovens dos Kurikutelas, brincávamos com tudo e com todos. Unía-nos uma amizade e uma solidadriedade que começou desde o tempo de sermos pequenos. A cumplicidade solidificou-se com a morte da mãe do JC. Ali ficaram três putos com o pai a lutarem contra as arguras da vida. O pai não era maquinista como os outros heróis do nosso bairro. Mesmo assim ao JC lhe demos propensão de entrar no grupo. Corríamos o nosso Huambo de lés a lés. A cidade era varrida com as nossas brincadeiras, os nossos risos, as nossas "patifarias". Ele era o Liceu, o Ruacaná, a Kambo, o bilhar no Nacional, o Ferrovia, os jogos contra os do Benfica (outro bairro lá do kimbo), a leitura de A Bola, o nosso Benfica, a discussão, o machimbombo. Partilhávamos e sentíamo-nos bem.

Um dia, numa das nossas discussões houve uma disputa azeda de palavras, foi-se a dis ficou a puta que o pariu, e acabou esta amizade por dois anos. Silêncio absoluto, escuridão permanente, tristeza no olhar, paragens de machimbombo desencontradas, passeios opostos, vidas separadas. Tinha morrido a mãe do JC há pouco tempo. Mas havia sempre os outros, amigos das mesmas coisas, que foram juntando os cacos da discórdia e colando a AMIZADE que sempre existiu.

Vivemos juntos em Luanda e por motivos de outras makas separamo-nos em setenta e cinco do século passado. Nunca mais nos encontramos. Hoje sei que continuamos amigos e tenho saudades deste JC. Kandandu JC!

sexta-feira, 24 de julho de 2009

A CHUVA DO MEU BAIRRO

A felicidade dos kandeungues do meu bairro estava na quantidade de chuva que caía e não naquilo que não existia. Oh!, e se no meu bairro caía chuva! Miudinha por vezes e muitas outras vezes aquelas torrentes tropicais que mais parecia rotura de conduta e que, sonhávamos, o céu desabava em lágrimas sobre nós. Havia sempre motivo para comemorarmos a chegada da chuva. Quem não apreciava muito essa nossa felicidade eram as mamãs que tinham trabalho a dobrar no tanque de lavar roupa. Lembro-me bem de uma dessas chuvadas. Estava no campo do Ferrovia e o meu clube do coração, os Kurikutelas, jogavam com o Benfica de Luanda. Os da capital pensavam que já tinham visto tudo, incluindo a piscina do Ferrovia e que ficava num dos topos do relvado, e que chuva daquelas só lá na Ilha deles. Sei que até nesse dia o comboio apitou roufenho, o Milo e o Raul Indipwo cantaram Kurikutetelas ensopados, e nós os do nosso bairro estávamos enxarcados até ao mais íntimo dos nossos corpos, os ossos. O relvado, em água, superava a piscina ali do lado, os madieu da Lua entraram de fato e gravata e quando o senhor de preto ainda teve ar para ultrapassar a água que lhe escorría das fronhas até ao (a)pito e soprou no dito cujo o resultado estava em 10-2 para os ferroviários. A partir daí os nossos jogos, lá no bairro, mudavam aos 5 e acabavam aos 10. Por vezes noite dentro e com reprimenda dos mais velhos.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

OS DO MEU BAIRRO


Todos os dias, durante 18 anos, ouvia o som dos tam tram dos comboios que rasgavam o meu bairro. Soube adormecer ao som das vielas e dos rodados, enormes, das garrats e das nonas que o meu pai sempre conduziu com amor. O sol, lá pelas 6 horas da manhã, batia na minha janela da casa amarela, a terceira casa de quem descia a rua do meu bairro a caminho do Ferrovia vindo da rua do Comércio, e atravessava o triângulo, e eu acordava ao som dos tambores de quem sonhava com canções de (en)cantar. O leite Nido com café de Cevada mais o pão quentinho preparava~me para avançar, linha fora, a caminho do Liceu. Tinha por companhia uma lata de refrigerante que pontapeava com doçura, pensando que um dia os pontapés que faziam a lata amolgar, de dores penso eu hoje, seria a lata que me faria transbordar de utopias.
Assim começava o meu dia a caminho de uma nova vida. Hoje faço poemas ao meu e aos do meu bairro.