Há objectos e momentos que ficam na nossa memória e nos marca a vida e os sonhos. Havia lá em casa um rádio, marca Hitachi, de capa castanha de cabedal e que tinha sido comprado em Las Palmas aquando da única viagem que o mais velho fez à Metrópole, com a família, em gozo de licença graciosa e que ficou sempre marcado na minha memória. O Princípe Perfeito, navio de muitas e com muitas histórias, tinha saído de Lisboa e resolveu fazer escala nas Canárias. Como era um candengue o meu pai resolveu que eu e a mãe estaríamos melhor se ficassemos a descansar, pois o pior da viagem para o Lobito ainda estava para acontecer, enquando ele "dava uma volta pela cidade para ver se valia a pena o esforço". Claro que a partir de uma certa hora da madrugada a mãe já não deixou dormir ninguém enquanto o kota não chegasse da sua viagem de bandeirante por ilhas com muito para descobrir. Já o dia ía alto quando o meu pai chegou perto de nós, não era portador de nenhum papagaio colorido, e ía começar a contar a sua peregrinação na noite. Nunca soube o que aconteceu pois o rimbombar dos trovões da mais velha, qual trovoada na Cela, calaram toda e qualquer tentativa de sabermos o que se passara naquela noite em Las Palmas. Mas como depois da tempestade vem sempre a bonança, passada a trovoada, o mais velho entrega-nos, em vez do Zé Carioca, um rádio que marcará para sempre o futuro das nossas vidas, rádio esse comprado sem impostos como se fartou de comunicar e com uma nitidez de som que não havia outro igual em local nenhum do planeta.
O Hitachi serviu de companhia a todos nós lá do bairro que aos domingos à tarde nos juntávamos à sombra da mangueira do quintal para vibrarmos com as fintas do Eusébio, as cabeçadas do Torres, os centros do José Augusto, os passes do Coluna, a rapidez do Simões e os golos do nosso Benfica. Isso quando o mais velho estava de viagem pois ele portista ferrenho não prescindia dos relatos do seu FêCêPê. Ainda facilitamos e deixamos que o Hitachi falasse dos manos Adrião, moçambicanos, durante uns mundiais de hóquei em patins. Nunca soube se o "nosso" Hitachi alguma vez deu a conhecer a Rádio Argélia, Moscovo ou do Congo. Morreu já em Portugal depois de em 1975, no nosso bairro lá no Huambo, gritar que Angola era de Cabinda ao Cunene e que na nossa terra só havia lugar para um só povo e uma só nação.
Um saudação com aquele kandandu bem nosso,
ResponderEliminarpor uma casualidade feliz, vendo fotos da nossa Angola, deparei com um post por si assinado, há longa data (grupo Balsemão, SIC)e não resisti em querer saber quem era o autor. Cliquei e aqui estou perante aquele que causou minha admiração. Reforçada com o conteúdo deste lindo blogue. Encontrei, finalmente, na blogosfera alguém que pensa como eu.
Sou Carlos Pereira - http://www.meusescapes.blogspot. com ; carlospereirangola@gmail.com
Foi um grande prazer reviver minha juventude, em paraleo com a sua. Carlos